A primeira vez que tenho memória de me ter mobilizado em torno de uma causa foi há cerca de 45 anos.
Frequentava na altura a escola básica de S. Martinho do Bispo e numa localidade bem perto de nós existia um lar que acolhia crianças e jovens em risco. Face às carências dessa instituição e porque um número considerável de crianças desse lar frequentava a mesma escola, fomos desafiados pela professora a colaborar naquilo que para nós é hoje tão frequente e bem aceite, mas à época era pouco usual, que foi uma angariação de fundos. As duas ou três crianças da escola que angariassem mais dinheiro e/ou bens iriam com os professores visitar o lar.
Rapidamente a minha família foi incentivada pela minha pequena figura a participar, mas não podiam participar de uma forma ligeira. Eu tinha um objetivo: angariar o máximo possível para poder ser uma das pessoas que iria àquela instituição. Ainda hoje consigo visualizar a bela nota azul de 100 escudos que com a ajuda de muitos reuni e graças à qual realizei o meu desejo: visitar aquele lugar.
Eu que vivia numa família e numa comunidade rodeada de amor e abundância senti pela primeira vez o peso esmagador do abandono, da tristeza, da pobreza, da indiferença. Talvez tenha sido aí, sem saber, que iniciaria o meu percurso no mundo do social, onde por via da profissão me mantenho até hoje.
Desde a longínqua visita àquele lar, ao longo dos anos, tenho tido oportunidade, e infelizmente talvez não tenha tido a capacidade de saber acolher todas, de servir os outros com o meu trabalho, o meu tempo, e com os dons que Deus me tem dado, os quais tenho posto ao Seu dispor.
Afinal, o que é isto de servir?
O dicionário da língua portuguesa define como “ser útil ou prestável”, “cuidar de”, “auxiliar, favorecer, ajudar”.
Numa sociedade em que ninguém quer sentir-se sujeito a nada nem a ninguém, num mundo onde apenas interessa o que o “eu” deseja, em que tudo gira em torno do que é material, belo, vantajoso e imediato, onde as solicitações do dia-a-dia são incontáveis e infindáveis, servir ocupa um exíguo lugar na nossa vida e no nosso coração.
As atrações e as distrações são imensas, quase todas legítimas: o trabalho, a família, a igreja, os amigos, o desporto, os eventos. Tudo nos ocupa, absorve e esgota ao ponto de muitas vezes ficarmos indiferentes ao que se passa ao nosso redor.
Dor, solidão, sofrimento ou carência convivem tantas vezes paredes meias connosco e não estamos predispostos para agir. Porquê? Porque estamos demasiado absorvidos pela nossa própria vida, não temos tempo para o outro, já não conseguimos “abraçar” nenhum outro compromisso ou desafio.
Como cristãos vivemos muitas vezes um sentimento contraditório, pois estamos esmagados pela rotina e pelas responsabilidades, ao mesmo tempo que somos alertados por Jesus para “cuidar dos órfãos e das viúvas”, para alimentar os que têm fome, para visitar quem está doente, para acolher o estrangeiro, para visitar o que está privado de liberdade (Mateus 25:35,36; ACF). Servir a Deus é isto mesmo: servir o próximo. Foi Jesus que nos deu a ordem e a orientação, por isso nada nem ninguém nos deve demover deste objetivo.
Muitas vezes pensamos que para servir é necessário abandonar o trabalho, a família, sair da nossa cidade e irmos para um país distante ou uma cultura muito diferente. Claro que isso é servir, mas Deus chama-nos a todos a servir na nossa casa, na nossa família, no nosso trabalho, na nossa comunidade, na nossa cidade.
Foi exatamente aqui, na nossa cidade, que encontrei a mais recente forma de servir Deus servindo os outros. Em 2018, na cidade do Porto, tive a oportunidade e o privilégio de ter um primeiro contacto com o projeto “Serve the City” (Servir a Cidade) e senti desde logo uma grande motivação para integrar o projeto. Pela graça de Deus, ainda em 2018, o projeto veio até Coimbra e desde esse primeiro jantar temos estado a servir a Deus, servindo o próximo.
Reunir um grande número de pessoas em condição de sem abrigo, com carência económica, com baixas competências sociais, pessoas sem voz e que passam despercebidas na cidade, convidá-las para jantar como se faz a um grupo de amigos, recebê-las com cuidado e requinte como quando recebemos visitas, proporcionar-lhes uma refeição e umas horas de partilha de experiências à mesa, onde são os protagonistas, apaixonou-me.
No final de um dia de trabalho, disponibilizar outras tantas horas a preparar tudo para receber os nossos vizinhos da cidade, acolhê-los, servi-los, escutar as suas histórias, as suas dinâmicas tão próprias e diferentes, despedirmo-nos com um abraço e um “até ao próximo jantar”, faz -me sentir grata, feliz e abençoada por poder fazer a diferença na vida de alguém, mais uma vez. Cada jantar é uma experiência diferente e enriquecedora. É um sentimento de serviço!
Servir deve definir um cristão. Em todo o tempo devemos estar dispostos a ser úteis ao nosso próximo. Deus dá-nos imensas oportunidades para o fazer. Servir não significa integrar um projeto, uma equipa, um grupo de trabalho. Servir depende de nós e do amor que Deus põe no nosso coração. Saibamos nós estar atentos, com um coração recetivo às necessidades do outro, disponíveis para oferecer o nosso tempo e os nossos talentos.
Permita-se deixar o seu conforto, as suas inseguranças, os seus medos e disponha-se a servir a Deus servindo o próximo.
Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra, nem indústria, nem ciência, nem sabedoria alguma (Eclesiastes 9:10-12; ARC).